Por Joubert Arrais
No último Mova-se, realizada em agosto de 2014, a programação local da dança fez-se destaque pela relação transversal das apresentações artísticas dentro do teatro e o fora dele na ação “Mova-se na Rua” A presença de corpos dançando no palco ao lado do Teatro Instalação foi um forte evidenciador da atuação sensível do evento em buscar promover situações de encontro que, nesta edição, completou 5 anos de atividades na capital amazonense.
Alguma reflexão crítica sobre essa relação faz-se necessária e, aqui, urgente. Não tanto sobre os espetáculos locais em si, mas a partir do seu acontecer fora do palco teatral legitimado, esse mover-se na rua. Mesmo sendo um palco adaptado para estar na parte externa ao Teatro Instalação, onde funciona um estacionamento, o que se presenciou foi um movimento de corpos e atenções tanto de quem já se habituou a ver a programação do Mova-se, como de pessoas outras que, por ali, passavam e paravam para ver o que estava sendo dançado, performado.
Da dança de rua nas “batalhas 2 vs 2” dos b-boys à coreografia BET@, de Adriana Góes com a cia. Corpo de Dança do Amazonas, outros corpos foram sensibilizados e se promoveu uma “partilha” de percepções sensíveis com a comunidade. Não se trata de uma partilha no sentido literal, mas de perceber a relação com o que é comum ao outro, até naquilo que não é partilhado (excluído) e o que é partilhado (exclusivo). Celebrar “a partilha do sensível” com essa distinção, como apresenta o filósofo francês Jacques Rancière (2009), é evidenciar, esteticamente, a força política das e nas práticas artísticas.
Havia, sim, alguma intenção do evento em buscar essa possibilidade de não ser apenas uma programação para o público especializado da dança e das artes. Contudo, fez mais e acabou por mobilizar o sensível de quem não está habituado a ver dança ou alguma ação artística. Não se trata de gostar ou não gostar, é outro movimento. Por exemplo, um ônibus lotado de gente, que passava pela rua paralela ao palco, parou para ver o que estava acontecendo. Naquele momento, eram as batalhas de dança de rua, fazendo da competição de mostrar habilidades um espaço de convocar atenções e mover corpos com/no seu cotidiano de estar habitando a cidade de Manaus.
A decisão da produção do Mova-se em promover essa situação teve seu risco. Não há garantia de que essas pessoas que passariam a gostavam ou não de dança, mas ao passarem por ali e, ali presenciarem corpos dançando, acabam sendo desestabilizados em suas rotinas de trabalho. Como também o público já reconhecido como “público de dança”, que noutro momento assistia a uma apresentação dos bailarinos e bailarinas do Corpo de Dança do Amazonas, via-se partilhando um mesmo espaço de fruição artística com o dito público geral. Atravessado por aquela outra atenção não tão artística, no sentido profissional, experenciou a dança no possível de cada um e para todos.
É fato que ali instaurou-se uma potência tanto para intensificar o presente como futuras outras relações. Esses cinco anos de Mova-se teve esse atrevimento. Como muitos outros eventos do Brasil, pegou para si esse desafio de fazer alguma relação com a comunidade da cidade. Ainda pode fortalecer essa empreitada, pensando a cidade como um grande palco de dança, até mesmo percebendo a cidade como algo além de palco cênico, como um lugar possível de jardinar poéticas que se constroem no convívio com o outro, intensificando, assim, essa transversalidade entre o que é tido como artístico e o que é considerado como não-artístico.
Podemos falar, então, de uma artisticidade, essa capacidade de sermos artistas de dança e artistas de vida, deixando-nos atravessas pelas estéticas que são engendradas no fazer arte e dança, profissionalmente, e também pelas estéticas que se engenham no estar no mundo e de sermos mundo. Para tanto, não basta apenas existir um evento artístico, com apoios públicos e privados, mas que este evento seja também acolhido por todos como uma possibilidade de encontro de diferentes, de que é possível, sim, estamos juntos em nossas singularidades, distinções, contradições e, arrisco dizer, idiossincrasias.
Joubert Arrais (Curitiba/PR) é artista-pesquisador, professor universitário e crítico de dança. Viajou à convite do Mova-se 2014, no qual lancou o livro Dança com a Crítica (Ed. Expressão Gráfica: Fortaleza, 2013), resultante das ações do projeto itinerante “Crítica com a Dança” em 2012 e 2013 pelo nordeste brasileiro. Escreve no <www.enquantodancas.net>.
Referência:
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009.
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