De vez em quando, de modo menos comum do que o necessário, algum governador ou prefeito inaugura um grande teatro. Arenas multiuso, auditórios e espaços diversos com capacidade para mil, duas mil pessoas ou mais. A louvável iniciativa de reverter o dinheiro público em espaços culturais, com possibilidade de receber atrações artísticas capazes não apenas de entreter, mas de tornar mais humanos, e às vezes até mais educados os eleitores, geralmente não alcança seus objetivos. E isso por alguns motivos muito simples, sendo o primeiro o fato nada incomum de que geralmente o único evento “artístico” financiado no espaço é a própria inauguração. Inaugurações pomposas, repletas de placas com nomes de políticos e administradores responsáveis pela obra não são raras, e são justas até. O que é raro são esses teatros manterem uma programação considerável e constante aberta ao público. Em resumo, de que adianta um espaço teatral megalomaníaco com uma programação anã? De que adianta investir dezenas de milhões em obras colossais quando a política pública para cultura raramente contempla programações sistemáticas, e teatros capazes de receber espetáculos diariamente acabam funcionando menos de uma vez por semana ou mês?
Parece que a prática de inventar elefantes brancos para autopromoção em inaugurações ainda permanece como uma boa plataforma na visão de muitos administradores públicos. Os recursos para cultura existem, e apesar de não serem fartos, conseguiriam, se bem aplicados, manter uma programação digna do nome nesses espaços. Exemplos como a cidade de Florianópolis, que sustenta um evento “cultural” tão questionável como a Fenaostra ao invés de manter em funcionamento um edital para o fomento dos artistas locais multiplicam-se ao extremo. Limitar o investimento em cultura a festas de não sei qual hortaliça ou produto, passando o restante do ano sem promover uma única apresentação artística decente parece ser a regra geral das secretarias de cultura, com honrosas e poucas exceções. Administrações públicas que gastam centenas de milhares de reais em um único show nacional (geralmente de duplas sertanejas) para comemorar o aniversário do município ou o natal, e passam o resto do ano dizendo que não possuem verba para cultura também são uma constante. Enquanto isso, teatros monumentais fechados ou caros demais para serem utilizados para produção local, e a quase que inexistência de espaços alternativos, forçam profissionais de artes cênicas, música e literatura a buscarem trabalho fora de suas cidades e do estado, ou então, a mudarem de profissão.
Outra questão que se coloca é qual a capacidade desses monumentos de mil, dois mil lugares em atender a população. Receber públicos de mil pessoas (que geralmente são sempre as mesmas) uma vez por semana atende às necessidades de populações compostas de outras milhares de pessoas que jamais pisaram num teatro? Reservar a cultura para eventos pontuais, limitados a públicos específicos não, e nem de longe, democratiza o acesso, pelo contrário, demoniza a cultura e a situa como fora de alcance, elitizada e inacessível a uma grande parcela da população, principalmente entre as classes em que um ingresso de R$ 50,00 reais é uma exorbitância.
Pergunto: o que é mais eficiente para o desenvolvimento cultural do estado, teatros de mil lugares, geralmente localizados no centro e fechados a maior parte do tempo, ou vários teatros menores, de até duzentos lugares, localizados na periferia das cidades e que funcionem como pequenos centros culturais? A partir daí surge uma outra questão: quais são os teatros com maior taxa de ocupação do estado, os elefantes brancos ou os de menor porte, capazes de receber a produção local? Acredito que a maior parte dos gestores públicos de cultura do estado não saberão responder, nem apenas por falta de dados, mas por absoluta falta do hábito em ir ao teatro.
Exemplos como o Circo da Dona Bilica, um teatro particular localizado no Sul da Ilha de Santa Catarina, com 250 lugares e programação contínua, repleta de artistas locais e a preços populares contrastam com espaços como Teatro do Centro Multiuso de São José, que com mais de 700 lugares, raramente recebe atrações artísticas, necessita de reformas urgentes e sem equipamentos ou técnicos, se limita a reuniões de políticos, palestras e feiras diversas.
O Teatro Embaixo da Ponte, na cidade de Rio do Sul, é outro exemplo de boa gestão e acesso. O espaço de 150 lugares, adaptado e equipado pelo poder público para receber apresentações, é referência estadual em difusão e valorização da cultura, sendo usado continuamente para receber os mais diversos grupos locais e nacionais, que se apresentam gratuitamente ou a preços reduzidos à população da cidade e arredores.
Teatros grandes são sim necessários, o grande problema é a sub-utilização desses espaços. Não adianta ter um teatro gigante sem equipamentos e sem equipes técnicas especializadas, como em geral acontece. Também não adiantam espaços onde os artistas locais não tenham acesso, sem clareza nos critérios de cessão de pauta ou que mesmo com pautas disponíveis permaneçam fechados a maior parte da semana. Outro ponto é a escassez de teatros. Santa Catarina possui mais de cento e cinquenta grupos de teatro, uma infinidade de músicos e contadores de histórias. Seria possível que todas as cidades recebessem atrações culturais regularmente? Sim, desde que existissem programas de circulação abrangentes e espaços capazes de receber esses artistas. Infelizmente, esses programas não existem na esfera pública, e quanto aos espaços, bem, temos alguns palcos de mil lugares que abrem uma ou duas vezes por semana para receberem espetáculos comerciais, no pior sentido da palavra.
É imprescindível pensar que o acesso à cultura ultrapassa os limites do entretenimento de massa, dos grandes shows das festas gastronômicas, e se configura pela constância e multiplicidade de eventos culturais e artísticos disponíveis a todas as classes. Frequentar peças de teatro, concertos musicais, contações de histórias deveria ser um hábito ao invés de algo esporádico e perdido em meio a eventos temáticos. E sim, as pessoas deveriam conhecer e avaliar os grupos e artistas da própria cidade, e esses grupos deveriam poder conseguir se apresentar em espaços adequados, que mesmo pequenos, de cem ou duzentos lugares, pudessem comportar uma programação regular. É urgente pensar que o acesso à cultura só poderá se tornar uma realidade além das propostas de campanha se se optar por espaços acessíveis e bem geridos em todas as cidades. Pensar em teatros gigantes e pouco numerosos para programações pequenas e irregulares é dar mais valor à inaugurações grandiloquentes do que ao que de fato seria capaz de transformar culturalmente uma cidade, ou seja, que cada um pudesse usufruir de maneira contínua, sistemática e irrestrita do direito ao acesso à produção cultural e artística produzida em seu próprio município, estado e país.
Afonso Nilson é gestor de cultura em Santa Catarina, crítico e dramaturgo. Escreve ocasionalmente para os jornais Notícias do Dia e Diário Catarinense. Participa regularmente de curadorias para mostras e festivais nacionais de artes cênicas. Publicou em 2014 o livro Pequenos monólogos para mulheres(Chiado Editora/Portugal e E-Galáxia ), coletânea de textos teatrais curtos. Doutorando em teatro pela Udesc com pesquisa sobre crítica teatral brasileira.
por Afonso Nilson Barbosa de Souza
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