A solenidade do Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade sempre nos traz boas sensações, mas neste ano gostaria de compartilhar com vocês uma em especial: a clara percepção de que há dois movimentos em torno da política de preservação no Brasil. São dois movimentos diferentes nos seus propósitos, mas que têm em comum o fato de que ambos vêm de fora para dentro, das forças da sociedade e do ambiente político em direção ao Iphan.
Um está claramente representando pelos resultados deste Prêmio. Se pudermos sintetizá-la, essa premiação é a materialização da ideia da sociedade civil se apoderando do patrimônio. A sociedade civil se apropria do sentido do patrimônio, uma vez que o conceito de referência cultural, forjado nos anos 1980, é o traço comum das iniciativas aqui premiadas; se apropria do papel político do patrimônio, ou seja, do patrimônio como território de estabelecimento de valores, de desejos, de campos em disputa; se apropria da agenda da preservação, enfocando todas as naturezas de bens a proteger: bens materiais, bens imateriais e acervos; se apropria das técnicas, do vocabulário, dos instrumentos, o que vale dizer que, o que era antes considerado como um domínio altamente especializado, inatingível, sob o controle de poucos, está hoje perfeitamente incorporado às iniciativas aqui premiadas.
Tudo isso é alentador por ser o sinal de uma política pública vitoriosa, mas é também muito demandante. Embora esse movimento venha gradativamente se espraiando para o nível local, permanece a expectativa de que, a partir do governo federal, se possa interferir em tudo, das normas urbanísticas tão negligenciadas pelos municípios e deixadas a cargo dos agentes econômicos; à propriedade intelectual coletiva, tema tão complexo e ainda não solucionado sequer no campo do Direito.
Disse que eram dois movimentos, ambos de fora para dentro. Falo agora do segundo:
Este, como o primeiro, também resulta da compreensão de que a política de preservação é bem mais do que a mera conservação de raridades e de prédios antigos, mas que tem um papel estratégico, seja na economia, na ordem urbanística, ou nas relações sociais.
Para o Iphan, condutor quase isolado dessa política ao longo de décadas, há hoje no ar o sentimento de certa “perda da inocência”, ao ver chegar algo que a instituição temeu e evitou durante muito tempo, à custa de, por vezes, se recolher a um segundo plano, ou a um plano do quase invisível. É inegável que a política de patrimônio hoje atiça olhares, cobiça e, sobretudo, desejo de instrumentalização.
Temos uma solidez institucional que nos permite continuar trazendo boas notícias, mesmo em tempos difíceis – o licenciamento funcionando bem e integrado, a política de salvaguarda dos bens imateriais cada vez mais enraizada, o apreço e a efetividade do instrumento do tombamento, o PAC Cidades Históricas e várias ações de conservação sendo executadas.
Nossas unidades estaduais são empreendedoras, são muito mais do que o tradicional serviço público, cujo papel é responder à demanda dos cidadãos. Durante todos esses anos, fomos criadores das nossas próprias demandas, criadores de desejos, criadores dessa agenda que hoje não está mais circunscrita à nossa casa.
Qual é a relação de tudo isso como a nossa celebração de hoje? Ou qual é o sentido do Prêmio Rodrigo, que, depois de 28 anos, permanece com o frescor de quando foi criado?
É justamente colocar o primeiro movimento como contraponto do segundo movimento. Ou seja, colocar a sociedade civil como destinatária e legítima dona da politica de preservação. É a ela que essa política se destina, é a ela que servimos e, portanto, dela devem vir os sinais, o ritmo, as falas, as escolhas.
Que se multipliquem os Barianis e as Mães Beatas de Iemanjá!
Que proliferem professores públicos como Luis Guilherme Baptista e documentaristas como Deniston Diamantino;
Ou parcerias sensíveis como a de Paulo Volles e Angelina Wittman;
Gente com a tenacidade dos Cavaleiros de Jorge, ou com a criatividade da Orquestra de Barro Uirapuru;
Pesquisadores e quilombolas conscientes como os da Tiririca dos Crioulos, uni-vos!
Essa não é a apenas nossa única saída, essa é a nossa melhor saída: apoderem-se da política do patrimônio! Queremos estar à altura de interpretar e fazer valer suas vontades!
Jurema Machado
Presidenta do Iphan
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